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6 de fevereiro de 2018

Às Portas de Numancia

154 a.C.
De Óstia em Roma para Numância na Celtibéria

De um mundo civilizado para um porão de um navio e desse para a Hispânia controlada pelos mais ferozes e temidos guerreiros.
Cassia Minor vê-se em território selvagem forçada a casar com Leukón de Sekaisa se quiser salvar a sua vida.
Inicialmente decidida a fugir de Numância, assim que tiver oportunidade, traindo quem a protegeu, Cassia dá por si dividida entre a fidelidade a Roma e os sentimentos que começam a desabrochar pelo bárbaro que a defendeu do aço e do fogo.
Como conseguirá lidar com a guerra iminente que opõe o seu pai a seu marido, a sua educação aos seus sentimentos e que ameaça destruir tudo aquilo que aprendeu a amar?

Capítulo Um

Más notícias. 
Não pretendia espiar, de maneira nenhuma. Mas ao passar pelo átrio escutei o meu nome e não pude evitar deter-me.
― Como vou dizer isso a Cassia?
Era a voz de minha mãe. Estava falando com o capitão Alexis, que tinha vindo visitar-nos aproveitando a sua tarde livre. Eu os tinha deixado a sós por educação.
― Com sensatez, querida ― respondeu o capitão ―. Ela já sabe que o seu pai é centurião, e um centurião não pode abandonar as suas tropas. Não agora que se trava outra guerra na Hispânia.
Aquelas palavras aceleraram o meu coração.
Outra guerra?
Papai ia travar outra guerra?Avancei com cautela. O átrio estava envolto nas sombras da tarde, mas o sol poente iluminava as águas do impluvium tingindo-as de ouro. Coloquei-me junto ao nosso pequeno altar doméstico, cujo fogo ardia dia e noite, e tentei ver a expressão de minha mãe através da cortina de fumaça.
Ela estava de pé, sustentando uma taça de vinho que mal tinha provado. O capitão Alexis, por seu lado, reclinou-se em um divã e mordiscava um figo com ar pensativo.
― Ele disse que estaria nas bodas de Cassia ― suspirou a minha mãe ―. Assegurou-me que, por essa altura, os lusitanos já estariam sob controle.
― E estão ― disse o capitão ―. Esse Viriato deu muitos problemas, mas os seus não podem fazer frente às legiões romanas.
― E então?
― Querida, a nova guerra não é contra os lusitanos, mas contra os celtiberos.
Minha mãe afogou uma exclamação de assombro. Eu também o fiz.
Meu pai nos tinha falado dos celtiberos: eram um conjunto de tribos selvagens que viviam na Hispânia Ulterior, a zona mais agreste da Península Ibérica. Eram tão ferozes que, a seu lado, os outros povos hispânicos pareciam gente civilizada.
Alexis confirmou os meus piores receios:― Se os rumores estiverem corretos, Roma nunca enfrentou um inimigo tão temível. ― Mas por que agora? ― Gemeu a minha mãe ―. Cassio nos disse que os celtiberos tinham feito um pacto com Roma!
― E fizeram ― assentiu o capitão ―. O cônsul Graco os convenceu. Mas parece que houve problemas com uma tribo… os Belos, se não me engano. Pelo visto, queriam murar a sua cidade, Segeda, e isso ia contra o acordo. Um de seus líderes foi convidado a explicar-se no Senado, mas saiu de lá aos gritos…
Um acesso de tosse interrompeu o seu discurso. Teve de tomar um sorvo de vinho antes de concluir:
― Um desastre, vá. Não se pode dialogar com aquela gente.
― E o que vai acontecer agora? ― inquiriu a minha mãe.
Eu me estava perguntando o mesmo. Encolhida no átrio, com os olhos fixos no altar, rezava aos nossos espíritos protetores, os lares, para que trouxessem o meu pai de volta o mais cedo possível.
Nunca tinha estado na Hispânia, mas tinha escutado todo o tipo de histórias no forum[3]. E nenhuma me agradava.
Queria que papai voltasse. Minhas bodas era o de menos: queria tê-lo em casa, a salvo.
O capitão Alexis suspirou.
― De momento, o Senado enviou o cônsul Nobilior com 30.000 homens para que impeçam a construção dessa maldita muralha. Além disso, pediu aos mercados que levem fornecimentos para o exército. O meu navio parte amanhã bem cedo para Ampúrias por esse motivo.
― Poderá levar uma mensagem a meu marido?
― Temo que não será possível, querida. Seu marido está na Hispânia Ulterior, e eu não penso sair da Citerior. De fato, pretendo não pôr um pé fora de Ampúrias. Logo que tenha descarregado as mercadorias no porto, voltarei para Óstia e esquecer-me-ei dessas horríveis terras ocidentais. Não dão mais que problemas.
Minha mãe ficou calada. Eu imaginava que tinha sentimentos contraditórios. Alexis, também.
― Lamento, de verdade ― acrescentou ele em voz baixa ―, mas eu não sou um guerreiro. Não quero que nenhum selvagem cabeludo me persiga até meu navio, compreende?
― Compreendo ― murmurou minha mãe. Sim. Eu também compreendia.
O sol já se tinha posto. A fumaça do altar subia em volutas para um céu púrpura.
“Boa sorte, papai”, desejei-lhe mentalmente.
O capitão Alexis se levantou. Não era um homem alto, mas a minha mãe lhe chegava apenas ao queixo. Eu tinha herdado dela a baixa estatura e a cara cheia de sardas; de meu pai, por outro lado, tinha recebido o cabelo liso e os olhos marrons.
O capitão estava acostumado a dizer que papai e eu não parecíamos romanos. Mamãe, por sua vez, era a viva imagem da deusa Juno: pequena, roliça, com os cachos castanhos e a boca pequena e amável.
Perguntei-me o que pensaria ela da guerra contra os celtiberos… e a perspectiva de não voltar a ver seu marido.
Obriguei-me a não pensar nisso.
― Se servir de consolo, querida ― Alexis estava dizendo a minha mãe ―, eu sim estarei nas bodas de Cassia. A viagem até à Hispânia apenas demora alguns dias; espero estar de volta brevemente.
― Obrigada, capitão. Isso me alivia.
Escutei a tosse de Alexis perigosamente perto do átrio e dei um passo atrás.
― A propósito…