Corre o ano 1647 e na Escócia estoura uma violenta guerra civil. Lean é reclamado para que os ajude a defender-se dos poderosos Campbell. E, apesar de sentir-se um renegado, aceita retornar às terras que tanto odeia por um único motivo: vingar-se de todas as atrocidades que sofreu de menino. Lean não só terá que percorrer um país esmigalhado pela guerra em busca de vingança, também terá que liberar sua própria batalha interior, entre a lealdade e o desprezo que sente por suas origens. Entretanto, o destino o envolverá em um singular triângulo amoroso, entre duas mulheres opostas, entre o amor e o ódio, entre a razão e a paixão, rachando a dura pedra em que tinha escondido seu aflito coração.
Capítulo Um
Despedidas, Porto de Sevilha, ano de Nosso Senhor de 1647.
O denso aroma de salitre alagou minhas fossas nasais, impregnando-as de incerteza pelo futuro que me aguardava do outro lado do oceano.
Suspirei fundo com pesar, pois aquele intenso e conhecido aroma era tão cotidiano para mim como o da flor-de-laranja que flutuava perfumando o subúrbio da Triana, Santa María a Branca e o Areal, o bairro portuário à beira do caudaloso e rebelde Guadalquivir, onde tinha vivido quatorze anos de minha existência.
Um robusto barco de sessenta canhões, imponente casco, mastros fortes e manipulação intricada me aguardava atracado para devolver-me a aquele que uma vez foi meu mundo e me viu nascer, mas sobretudo sofrer.
— Moço, apesar de te considerar um grande marinheiro, está tão pálido como as recolhidas velas de seu barco.
Sorri apenas, entreabri levemente os olhos esquivando dos raios oblíquos de um sol nascente que lambia o horizonte brunindo-o com sua majestade e assenti com a cabeça.
—Sim, mestre Beltrán — admiti—. Pois, embora o mar sempre me outorgasse paz, o destino ao que me deixo arrastar me arrebata isso.
—Poderia te conceder outro destino mais adulador, seria fácil para eu solicitar para ti uma travessia às Índias Ocidentais, tenho grandes amigos na Casa de Contratação, bem sabe. — Posou uma mão em meu ombro e estalou a língua ofuscada, derramando sobre mim um cálido olhar paternal. — Não concordo com esta viagem, Assem, como tampouco meus amigos conseguem entender por que retorna ao inferno por própria vontade.
—Tampouco eu, meu bom Beltrán. Entretanto, sinto ferver com agudo desgosto meu condenado sangue gaélico ao chamado de meu tio Lachlan, e você melhor que ninguém conhece minhas contas pendentes naquelas verdes terras.
Beltrán apertou seus magros lábios convertendo-os em uma fina linha esbranquiçada e formando uma careta reprovadora, ao tempo que negava melancólico com a cabeça.
— A vingança, moço, é uma arma de afiado punho. Sanou em corpo e alma, e forjou um futuro nesta formosa Sevilha que te tirou das garras da escuridão que morava em ti. Posso te assegurar, valoroso Assem, que temo tanto por ti como o faria por um filho de ter sido bento com algum.
—Ambos sabemos que minha alma nunca pôde curar-se completamente, — argumentei pensativo — e que meu destino não é outro que ajustar contas e confrontar o negrume que nunca pude dissipar de meu coração.
O mestre assentiu depois de um pigarro emotivo, hasteando um morno sorriso tremente que esquentou meu peito.
— Foi meu salvador, — eu disse — o pai que me negou, meu guia e meu professor, jamais lhes esquecerei, devo-lhe tudo o que sou.
— Entretanto, fica a insipidez de não ter podido fazer mais.
Neguei veemente com a cabeça e o estreitei entre meus braços e, apesar de ser um homem corpulento e de boa altura, pareceu perder-se em meu peito. Sorri, aguardando a graça de rigor.
— Por Deus, moço, faz-me parecer um pardal aleijado em seus braços!